sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O DEVOTO E A DEVASSA ( quem quiser ler )














O crepúsculo desfilava ao longo do horizonte banhando os últimos momentos de mais um dia. Pelas frestas da janela superior de um sobrado devoto, a pouca luz chamuscava de dourado o pálido móvel que sustentava uma enorme Bíblia aberta, que Deus, acima dos céus, não se sabe onde, poderia ler sem dificuldades.

O móvel que fazia o papel de pedestal à Bíblia se mostrava imponente diante daquele espaçoso cômodo bem acortinado, acarpetado e pouco arejado, o que lhe conferia um leve aroma de terra batida com lodo fresco.

Havia também uma cama simples de casal acompanha de um criado-mudo por cada lado, e um guarda-roupa, todos tímidos perante aquele majestoso móvel lustrado com antiguidade, madeira pesada e o cheiro meio acre de vários séculos que depositaram ali poeiras que viajaram os ares seculares.


Era um verdadeiro esquife adaptado para um defunto milenar que jamais conheceu os sete palmos abaixo da terra.mais vistoso, sobressaltavam aos olhos as molduras douradas que acomodavam imagens idílicas quase ocultas por versos bíblicos dos livros de Salmos e Cânticos.
Era um quarto. Um quarto que parecia ser o ponto de hospedagem dos anjos menos abastados que porventura devem ser encaminhados à terra para guardar almas devotadas.

Isso se um olhar mais atento não percebesse que ali, quase imóvel, encostado ao lado de uma parede, em um ângulo confortável e favorecido para ver e não ser visto, um desejo ardente de todo mortal, estava Abraão, que não era aquele que dizem ter vivido por 175 anos.
Esse Abraão desfrutava sua humilde vida como diácono da região, tinha 42 anos e em sua modéstia não pensava que chegaria nem aos 100 anos, embora fosse confortado por aquele sentimento comum que homens e mulheres possuem, pensam que são imortais ao se esconderem na morte dos outros.
Quem morre são os outros, nunca nós mesmos, quando muito um parente próximo, mas o intocável “Eu” quer se congelar na imortalidade.

Abraão parecia estar querendo se esconder de algo se passando por imóvel.
Pertencia a mais uma dessas igrejas cristãs que se multiplicam como praga no seio da globalização: são negócios que mais fáceis são impossíveis.

Monta-se com qualquer barracão, com cadeiras que podem ser improvisadas e um tolo que articule algumas palavras fantásticas.
O lucro é garantido e livre de impostos. A matéria prima é a miséria em suas formas materiais ou espirituais, o que nunca faltou aos homens.
Abraão é um dos fundadores da Igreja Prosperidade em Cristo, sentia-se orgulhoso por aquela humilde casa que almejava se espalhar pelo mundo como todas as outras que querem o mundo e os homens ao talante de seus mandamentos.

Mas naquele momento a prosperidade estava bem ao lado, no jardim multicolorido que dava um espetáculo a Abraão que presenciava todo um encanto que lhe parecia mágico e único. Há cinco anos, desde que Matilde se mudou ao lado, ele presenciava aquela cena. Era cotidiana, mas nunca o cotidiano havia assaltado sua atenção como agora, transformando o ordinário em um milagre.
Matilde havia roubado toda a prosperidade de Cristo. Abraão a espiava.
Matilde regava o jardim de biquíni da cor malva que de tão pequeno, se perdia nas fartas e contornadas extensões do seu corpo branco-rosado.

Abraão parecia estar querendo se esconder de Deus, mas deveria saber em seu entendimento de anos e anos dedicado aos céus, que Dele nada se escapa, nem
mesmo o pensamento que ainda não foi pensado

Matilde não é adolescente, moça, adulta nem velha, é o tipo de mulher com uma beleza misteriosa que espanta qualquer faixa etária, sua idade havia fugido desde que se perdera naquela beleza enigmática.

Como um vulcão adormecido, externamente imóvel como uma rocha, mas internamente fluído e incandescente, Abraão, absorto, assistia a cena corriqueira que se mostrava como milagre. O que se passa nas profundezas do inefável é inatingível pelas palavras, elas tentam bravamente imergir no inexplicável, mas são derretidas.

Abraão estava em brasas que ameaçavam romper em chamas conforme os movimentos graciosos de Matilde, a vizinha mais desejada e cobiçada das redondezas, capaz de colocar chifres em formas, tamanhos e quantidade,tantas quantas o Diabo possuía segundo o entendimento de Abraão.

Matilde parecia Eva no paraíso, o biquíni era só um ponto para amparar aqueles resquícios de pudor que parecem ter sido enraizados desde que os primeiros seres humanos passaram a ser bípedes e grupais.

Esguichava água em seu jardim colorido
e perfumado, um pequeno arco-íris se formava, toda aquela obra parecia um retrato vivo do paraíso iluminado pelos já sôfregos raios de sol que conferiam o último retoque ao fim de mais um dia com suas belezas e horrores.

Certamente que não se passava pela sua cabeça que ali ao lado, o vizinho fervoroso até no nome, incandescia num embate entre desejos e censuras que superavam as duas guerras mundiais juntas.

Banhava as flores e o seu corpo, juntava pétalas caídas e lançava-as sobre si, pegava os botões de rosa que não suportaram o orvalho da noite passada e roçava suavemente o corpo. Parecia querer ressuscitá-los, mas morto que é morto não morre mais. Mortos, porém felizes por tocá-la, era o último cântico entoado pelas rosas falecidas.

Quando Matilde abaixava sem pudores para retirar galhos e folhas mortas que ameaçavam desbotar o canteiro que lhe deixava mais orgulhosa, o das margaridas branqueadas e amareladas, em harmonia com as rosas rubras, Abraão sentia o corpo prestes a explodir.
Uma sensação que não experimentava nem quando sonhou que tinha morrido e sido arrebatado para o reino celestial, quando então conheceu seu xará, além de Jesus que pela primeira vez o via despregado da cruz e bem diferente do branco de olhos azuis ou verdes que costumava estampar os mais diversos objetos mundanos.

Quase viu também, Ele, o Todo Poderoso, Deus;porém acordou antes mesmo de presenciar o Pai de rosto e corpo inteiro.

Nem mesmo quando o acaso conferia uma íntima ligação entre a oração que rogava por um sinal de Deus e o extraordinário que se sucedia, Abrão, o diácono, experimentou sentimento tão arrebatador.

Como na ocasião em que no funeral de sua bisavó, ao lado do defunto que se ocultava na mortalha, abraçado com a avó, rogou aos céus pedindo um sinal, qualquer que fosse. A avó no exato instante caiu morta

Do seu recôndito Abraão ladrava a beleza de Matilde, como todos os homens e mulheres costumam fazer: ladram a beleza, levam uns e outros para o aconchego inviolável do espírito, e lá eles se tocam, entram um no corpo do outro da forma como quiserem, em posições e gemidos, regados a secreções corporais e moldados por desejos que se fundem em um só.

Se sentem donos do mundo, bailarinos nus no centro do universo por um curto lapso de tempo que se desfaz em milésimos, onde são arrebatados do paraíso e lançados novamente ao inferno onde se dão conta de todo manto civilizatório que não permite que os desejos sejam revelados sem os inúmeros figurinos das convenções sociais.

Os segredos do corpo do outro, em suas texturas e aromas, violados e saboreados em suas múltiplas formas e intensidades, jamais são revelados ou comunicados sem antes serem falseados pelo decoro.

Abraão e Matilde não podiam se fundir em um só, no meio daquele pequeno jardim do éden iluminado pelo mistério: até poderiam um dia, se o jogo de palavras e ações entre os dois fossem capazes de criar desejos desejantes um pelo outro.

Mas não naquele exato momento, que se apresentava como mais distante do que o juízo final que sempre esteve à porta desde que homem criou Deus e Deus o homem


Uma fome de 42 anos arrebentava com o furor de duas bestas, as que vieram do mar e da terra.

Esse homem sempre muito apegado às coisas espirituais notou que Matilde era carne e não espírito.

Abraão estava desconcertado, desejava a carne tépida de Matilde mais do que o insípido espírito santo, mas sentia que seus pensamentos e sentimentos estavam sendo violados por um olhar perscrutador mais pesado que o universo com seus planetas, estrelas, cometas, luas e meteoros todos juntos

Desconfiava que a qualquer momento o Diabo fosse surgir debaixo de seus pés carregando-o pelo tridente.

Começou a rogar ao Senhor, pediu que o livrasse daqueles pensamentos que não lhe pertenciam e que não eram pensados por ele.

Logo ele, Abraão, que sempre imaginou que pudesse ter controle sobre o que pensava, pois dentro de si habitava um Eu transcendental, o imortal que se escondia por trás da carne fraca e podre, como dizia os ensinamentos daquele livro pomposo exibido em seu quarto como a última das pedras preciosas.

Quando Abraão se deu conta estava rezando nu com Matilde galopando como uma Valquíria sobre seu corpo.

Se antes conheceu o paraíso em sonho, sentia-se diante da porta do inferno prestes a ser atendido por aquele que não escolhe se você quer ou não entrar.

Abraão pecava em pensamento. Matilde era real, mas o pecado era irreal, porém impunha dor e sofrimento sentidos em cada poro.

Sentia-se marcado a fogo, ponta de lança e lâmina de espada, uma dor que realizada por todos os métodos de tortura já realizados pelos sacerdotes.

Todos eles eram exumados e aplicados em Abraão na forma do pecado e da culpa: sem dúvidas os melhores métodos para manutenção das ovelhas de Cristo.

Em meio a glórias e aleluias Abraão fechou todas as venezianas. Afastava de si o crepúsculo, o azul negrume do céu, o jardim multicolorido e o milagre de Matilde.

No dia seguinte pediu unção e oração. Dizia que o demônio habitava ao lado de sua casa. Matilde de Eva passou a ser Lilith.

Epílogo: Muitas Matildes, entre os séculos XVI e XVII, foram mortas porque regavam seus jardins multicoloridos, queimadas em fogueiras ou estranguladas em praça pública. Em menor grau, ainda costumam ser, não queimadas, mas apedrejadas. Matildes já foram Liliths, Serpentes e Bruxas



























5 comentários:

Deusa disse...

Adoro vc aqui Leão
Gosto dos seus comentários
beijosss

Kyria disse...

Obrigada Deusa, pelo comentário atenciosos e carinhosoo blog do Gaspar. Bjão

O Profeta disse...

Ah mas esta calmaria aprisionada
Sobe ao celeste um frio arrepio
Entre o mar e as negras pedras
Vive um coração de onde escorre um rio
Onde moram sereias douradas
Onde os peixes falam de amor
Onde as pedras são felizes
Onde as águas lavam o rancor


Boa fim de semana


Doce beijo

Deusa disse...

ola Profeta

Voce sempre deixa um Perfume por onde passa ...
Fico feliz quando vc passa por aqui Obrigada
Abraço Apertado

Deusa disse...

Kyria

Obrigada ter vindo aqui

Vou la te visitar

Abraçooooo